As formas de agir de muitos mestres do passado que tentavam encaminhar seus alunos pela senda da liberação, principalmente os que utilizam métodos relacionados ao trabalho exaustivo, seriam consideradas inadequadas por ocidentais do presente, principalmente por sermos mais frágeis, incapazes de compreender o processo de purificação. Há, portanto, uma característica de purificação nas coisas que nos acontecem no dia-a-dia.
É muito comum que em nossas atividades ordinárias sejamos importunados, é comum ainda que sejamos desprezados e que sejamos maltratados. Contudo, com a mente treinada temos condições de não nos afetarmos com tais importunações e entendermos tudo que se passa com o outro como confusão dele.
Não se trata de não se sentir mal com a posição ou com a perspectiva do outro, mas sim de treinar a capacidade de não se deixar abater pelo que o outro promove. Os sentimentos de raiva, apego e ignorância, espalham-se por todos os lados, são estes sentimentos que promovem o apego ao ego e à aversão as mudanças de opinião, tão saudáveis à mente.
Diz o quarto verso:
Vou prezar os seres que têm natureza perversa
E aqueles sobre os quais pesam fortes negatividades e sentimentos,
Como se tivesse encontrado um tesouro precioso,
Muito difícil de achar.
Em tempos de degenerescência, qualquer posição tomada pode ser ponto de partida para o revide e principalmente para a evolução da confusão. Diante disso, nossa mente deve ser treinada para não sofrer com a ação do outro, mas sim para valorizar o outro em sua essência, independente de como ele esteja agindo. Reconhecer o outro, aquele que nos ataca, como um tesouro e manter a serenidade diante da adversidade é uma fase importante do treinamento espiritual. A alegria perfeita, ensinada pelas quatro incomensuráveis, é em essência a serenidade aqui destacada.
Há um texto, das origens do franciscanismo (estudo das fontes e ensinamentos de Francisco de Assis) que retrata essa experiência e que ensina de modo alegórico o quarto verso que muda a mente.
Vindo São Francisco certa vez de Perusa para Santa Maria dos Anjos com frei Leão, em tempo do inverno e atormentado pelo fortíssimo frio, frei Leão pediu-lhe:
Pai, peço-te, da parte de Deus, que me digas onde está a perfeita alegria.
E São Francisco assim lhe respondeu:
Quando chegarmos a Santa Maria dos Anjos, inteiramente molhados pela chuva e transidos de frio, cheios de lama e aflitos de fome, e batermos à porta do convento, e o porteiro chegar irritado e disser:
‒ Quem são vocês?
E nós dissermos:
‒ Somos dois dos vossos irmãos, e ele disser:
‒ Não dizem a verdade; são dois vagabundos que andam enganando o mundo e roubando as esmolas dos pobres; fora daqui!
E não nos abrir e deixar-nos estar ao tempo, à neve e à chuva, com frio e fome até à noite: então, se suportarmos tal injúria e tal crueldade, tantos maus tratos, prazenteiramente, sem nos perturbarmos e sem murmurarmos contra ele (…) escreve que nisso está a perfeita alegria.
E se ainda, constrangidos pela fome e pelo frio e pela noite batermos mais e chamarmos e pedirmos pelo amor de Deus com muitas lágrimas que nos abra a porta e nos deixe entrar, e se ele mais escandalizado disser:
‒ Vagabundos importunos, pagar-lhes-ei como merecem.
E sair com um bastão nodoso e nos agarrar pelo capuz e nos atirar ao chão e nos arrastar pela neve e nos bater com o pau de nó em nó:
Se nós suportarmos todas estas coisas pacientemente e com alegria, pensando nos sofrimentos de Cristo bendito, as quais devemos suportar por seu amor:
Ó irmão Leão, escreve que aí e nisso está a perfeita alegria, e ouve, pois, a conclusão, irmão Leão.
(Fonte: Aleteia – Disponível em: <https://pt.aleteia.org/2017/01/01/sao-francisco-de-assis-explica-a-perfeita-alegria> Acessado em: 21/10/2018)
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